sábado, 29 de dezembro de 2012

Acordei de súbito, assustado, suando muito pela testa e com os pés gelados. Olhei pro lado com os olhos ainda pesados e os cílios pregados. Ela não estava mais ali, me senti bem e tentei pegar no sono de novo, mas algo estava errado, muito errado. Desvencilhei o lençol do corpo e senti algo estranho na altura do umbigo, algo muito estranho.

- Que merda é essa? Pensei, enquanto passava a mão para examinar aquela dor tão familiar que se alojava no meu estômago. Que merda é essa? Algo cravado na barriga, senti um cabo macio de plástico e tentei puxar aquilo, em vão. O sol esquentava o pequeno quarto a ponto de incomodar, pelo barulho que vinha da vizinha, já se passava das 9 da manhã. A vizinha esquizofrênica sempre acordava às 9 e remexia os móveis da casa com uma força surpreendente.

Continuei reflexivo. Deitado na cama, solitário, de barriga pra cima, com um pouco de ressaca e bastante confuso. "Mas que merda é essa?" Cogitei a possibilidade de ser um sonho, logo mais acordaria e aquela puta de ontem a noite, com salto alto e saia de couro preto estaria ali, roncando do meu lado e babando meu travesseiro. Não, era tudo real, o sol estava quente demais, suava em bicas pela testa e tinha uma merda de um punhal cravado na barriga. Não doía, não sangrava, apenas incomodava quando eu virava para tentar fugir do sol que derretia pela janela em direção a cama.

Maldita vadia - amaldiçoava-a com tom de voz vibrante. Dei uma olhada, ainda deitado de barriga pra cima, para a escrivaninha onde costumava guardar meus escritos, documentos e alguns trocados. Estava tudo lá, intacto, ela não roubara nada. Maldita piranha, tentou me matar, mas não contava com a minha sorte! Sim, um grande homem de sorte, com vinte e dois anos de idade, morando em um quarto barato e úmido, vizinho  de uma louca esquizofrênica viciada em decoração de ambientes internos. Sem objetivos, pouco dinheiro, inconformado com alguma coisa, e sem ideia de por onde começar. Em plena quinta-feira enquanto outros da minha idade vão às universidades, fazem compras, visitam suas namoradas e parcelam seus veículos. Eu estava ali, vinte e dois anos, um punhal enterrado na altura do umbigo, não doía, não sangrava, apenas incomodava.

O dia parecia bonito lá fora. Lembrei dos jarros de flores da senhora Zazá, dona do conjunto habitacional que eu me mudara havia dez dias. Jarros estrategicamente posicionados, flores brancas atrás das violetas separadas por uma muretinha viva de trepadeiras e de repente me senti triste e aflito. Estiquei o braço esquerdo até a escrivaninha, senti o cotovelo estralar e liguei o rádio para me sentir menos só. Normalmente me dou bem com minha solidão, somos companheiros fiéis e bebemos e fumamos cigarros por longas noites filosóficas. Mas naquele dia algo estava errado, o sol quente demais, uma noite anterior louca demais, com direito a muitas drogas que me deixaram depressivo nessa manhã.

Liguei o rádio para fugir um pouco do real e tentar pensar em outras coisas além daquele punhal cravado na barriga. As pessoas normais esperneiam quando as coisas não saem como elas planejam. Esperneiam, reclamam, falam muito e escutam muito pouco. Eu sou mais como um vegetal, um ser totalmente adaptável e passivo, frio, adepto das minhas convicções, apenas relaxo e deixo as coisas acontecerem. Meu pai, certa vez, (e ainda lembro exatamente desse dia. Sentado na sala, com um longo charuto fedorento entre os lábios, puxando e exalando aquela fumaça densa e cinza, cruzando as pernas de instante em instante) disse que os jovens dessa geração são grandes bundões (inclusive eu), acomodados, sem objetivos, verdadeiros bundões inanimados. E ele continuava por horas com todo aquele papo saudosista sobre os jovens atuais, bundões, que nem na época da geração perdida os jovens eram tão idiotas e imprestáveis. Ele as vezes acertava nas palavras.

Ah, camaradas. Se algum dia se sentirem como eu, triste a ponto de não se importar com um punhal firmemente cravado na barriga, que não dói nem sangra, apenas incomoda, não liguem o rádio! Essas coisas foram feitas para aumentar o número de suicídios nas grandes cidades. Como pode tanto lixo? Como aguentamos engasgar tanta merda seca de uma vez só? É verdade que a vida sem música seria um pernício, mas isso que as rádios propagam não pode ser música, não pode ser nem resquício de notas acidentalmente arranjadas! Depressivo demais, vivemos no meio disso tudo, não existe qualidade em absolutamente nada.

E quem sou eu, para apontar esse dedo sujo, essa unha grande e encardida, para pronunciar tais revoltas? Nunca termino o que começo, nunca sei o que quero e não sou bom em nada. Mas a minha alma jovem e inquieta almeja algo grandioso. Sim, essa alma jovem que flameja uma chama roxa e me contagia para algo que não posso explicar. Não agora.

É, caro locutor, estamos no mesmo barco, escorrendo na mesma vala que termina no mesmo amontoado de merda e esgoto. Arremessei com dificuldade o rádio pela única janela do quarto, puxei o lençol até o pescoço e procurei uma posição melhor na cama, imaginando o porque daquela puta ter feito aquilo comigo.






Eles fazem questão de demonstrar que são felizes 
e essa é a grande habilidade do ser humano
enganar mais a si mesmo que os outros

Por isso jogo poker
e brinco com as vidas

Estão todos enganados
precisam ser alguém, ter alguém,
 reconhecido
sentado na varanda confundindo
as cores do asfalto morno
com de garotas joviais, enquanto escuta
a água caindo do chuveiro às 9 da manhã.

até ao ódio rejeitados pelo trabalho
pelos cativeiros
pelos cortiços
rejeitados por si mesmo.

E não se conformam
e falam muito e escutam
muito pouco.

Somos conscientes inconformados
da morte e da dor
ébrios de liberdade
acordando dia após dia
com o sol na face
e dois cigarros na carteira.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

um outro qualquer as terá
e eu caminharei por aí
em meu short surrado
fumando cigarros demais
tentando extrair algum
drama
de nehum progresso
de fato.

*

tenho que pensar na morte mais e mais
senilidade
muletas
poltronas
escrevendo poesia púrpura com a
caneta pingando
quando mocinhas com bocas
de piranha
corpos como limoeiros
corpos como nuvens
corpos como flashes de luz
pararem de bater à minha porta.

Não se preocupe com rejeições, parceiro.

fumei 25 cigarros esta noite
e você sabe sobre a cerveja.

E o telefone tocou apenas uma vez:
era engano. 

Charles B.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Se eu pudesse, algum dia, escrever algo parecido com "Pergunte ao pó" de John Fante, tenho a certeza que estaria perto de alguma coisa.

É, ele sabe de alguma coisa, sabe das relações humanas no seu intimo e vergonhoso estado. Por dias tem sido o meu refúgio, de algum modo me fez sentir menos solitário. 

"Outro dia, poesia! Escreva um poema para ela, derrame seu coração para ela em doces cadências; Mas eu não sabia escrever poesias. Era amor e dor comigo, rimas pobres, sentimento desajeitado. Oh, Cristo no céu, não sou escritor; Não consigo sequer escrever uma quadra, não sou bom neste mundo.

Fiquei parado junto a janela e agitei as mãos para o céu; não sou nada bom, apenas um impostor barato. Nem escritor, nem amante, nem peixe, nem ave. Então, qual era o problema?"

Um brinde aos grandes cães que sempre lutaram tão bravamente.

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

E vocês sabem o que é um sonhador, cavalheiros? É um pecado personificado, uma tragédia misteriosa, escura e selvagem, com todos os seus horrores frenéticos, catástrofes, devaneios e fins infelizes... um sonhador é sempre um tipo difícil de pessoa porque ele é enormemente imprevisível: umas vezes muito alegre, às vezes muito triste, às vezes rude, noutras muito compreensivo e enternecedor, num momento um egoísta e noutro capaz dos mais honoráveis sentimentos... não é uma vida assim uma tragédia? Não é isto um pecado, um horror? Não é uma caricatura? E não somos todos mais ou menos sonhadores? 

Fiodor D.
Fiodor

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012


quando Deus criou o amor Ele não ajudou a todos
quando Deus criou os cachorros Ele não ajudou os cachorros
quando Deus criou as plantas foi normal
quando Deus criou o ódio nós tivemos uma utilidade aceitável
quando Deus me criou Ele me criou
quando Deus criou o macaco ele estava adormecido
quando Ele criou a girafa estava bêbado
quando Ele criou os narcóticos Ele estava doido
e quando Ele criou o suicídio Ele estava deprimido
quando Ele criou você deitada no colchão
Ele sabia o que estava fazendo
Ele estava chapadão e doidão
e Ele criou as montanhas, os oceanos e o fogo todos no mesmo estouro.
Ele cometeu alguns erros
mas quando ele criou você deitada no colchão,
com a cabeça no travesseiro
Ele gozou em cima de Seu abençoado Universo inteiro.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Ela flutua pela cozinha
escuto levemente os talheres batendo nos pratos

Ela sempre acorda mais cedo 
e prepara o ovo

De ressaca, provo o cheiro
"estou no paraíso"
a manteiga derrete nas torradas
então ela vem

derrama farelos na cama
e eu sacudo a cabeça

Já nem sei o que fazer
é apenas a caridade
que faz de você, o que você é.

domingo, 16 de dezembro de 2012

Pensando alto
como nos sentimos hoje?

Ando por essas ruas humilhadas
sem ter o que fazer
Apenas ando, ando e ando
E os postes refletem suas sombras
curvadas de medo nas ruas humilhadas.

Ando entre as poças no asfalto
entre o rio de esgoto que escorre
a chuva não alivia e torna tudo mais triste.

Vejo as casas fechadas, janelas trancadas
Um velho fuma na varanda
enquanto a velha ronca e peida no quarto.

Irão os pássaros cantar?
Essa noite adentro parecia eterna
Os trovões orquestravam meu pavor
e eu já nem sabia o que era real.

Mas ando, nas ruas que se humilham
nos postes que se curvam
e pulsam vida
na falsa segurança das casas isoladas

sem amor
sem vida
sem estilo
Deus! Sem o mínimo de piedade.


Ando sem ter direção
para pensar, e achar um bar
somos nossos próprios salvadores
e nada pode mudar isso
irão os anos nos tratar bem?



o próximo gole
o próximo trago
o próximo amor desperdiçado.


terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Deus é agonia e desespero
um único poste aceso na longa rua
o pássaro amputado que já não voa

Deus é a criação humana da miséria
a última bala na agulha
a agulha penetrando a derme
o olhar esfomeado 
de um animal abandonado

Ela retorna do mar balançando a cabeleira
estonteado eu admiro sua saída triunfal
e penso como estou fodidamente apaixonado.

Deus é isso
seu biquine secando no varal
tudo intimamente estranho como antes
Dor
Pena
Saudade e dor.

Uma garota estuprada no corredor do cinema
um vagabundo apanhando da polícia

E você saindo do mar
balançando a cabeleira
sem perceber que te olho de longe.

Pequenos instantes
frações decimais
que perpassam grandes virtudes.

sábado, 8 de dezembro de 2012

Deito no quarto tentando administrar a bad trip. Cabeça cheia, vergonhosamente inundado de sentimentos. Minhocas trepam dentro do meu crânio e um gato arranha o telhado de zinco enquanto é escaldado pelo sol.

Os últimos dias não têm sido fáceis. Na verdade, desde a volta da última viagem que os dias são duros e as noites frias demais. Me sinto ridículo escrevendo esse 'diário'. Com esforço viro pro lado pra fugir do sol que derrete pela janela até que meu pai entra no quarto e liga a velha televisão já sem cores. O quarto não é grande, cabe a cama e o armário, a tv e uma estante cheia de livros. Já vivemos em lugares piores, sem dúvidas. Já moramos em favelas, quartos abandonados de hotéis abandonados. Sem água, comida, dinheiro."Onde vocês estavam nesses dias?" Meu pai é um homem forte, como poucos. Olho pro lado, vejo ele, seu braço engessado e sinto vontade de falar alguma coisa, mas é sempre assim, nunca falo nada.

Ele está velho e cansado. Mais cansado do que velho. Me lança um olhar vazio, e através de um sorriso no canto da boca, traduz: "Eu sei que estou assim." "Sim, sei. Mas eu sou de ferro atômico." Posso até escutar o tom da sua voz falando essas coisas."Ferro atômico..." Queria devolver um pouco de brilho aos seus olhos tão profundos, mas um homem nessas condições não pode ser ajudado.

Sinto a barriga embrulhar e a vista esmorecer, parece que estou sendo atacado por um grupo raivoso de formigas africanas, uma dor da porra me sobe pela coluna e deixa meu corpo dormente. Me dispo na frente do espelho do banheiro e lá estou eu, face a face com a própria morte. Me encaro por cinco minutos, dez minutos. O gato ainda arranha o telhado de zinco porém o sol já vai baixo.

Uma cabeça enorme , acoplada de qualquer jeito em um pescoço fino, plantado em um tronco mais fino ainda. Magro, amarelo, duas bolas penduradas e um pau que sente falta dela constantemente. Me perdi em algum caminho. Me sinto triste, horrível, imprestável, sem amigos. Elas constantemente me deixam ir, eu também as deixo ir e já começo a pensar se a merda do problema está realmente comigo. Eu poderia facilmente me encaixar nisso tudo. Ter uma namorada, arrumar um emprego, me formar. Dizem que sou inteligente e algo grandioso me espera. Tudo merda!

Não tenho grandes pretensões, só não quero ser mais um. Não tenho medo de sair da zona de conforto, e já sou mais um só de usar esse jargão tão depressivo. Mais depressivo que um saxofone gemendo solitário numa noite chuvosa da cidade.

Vejo amigos se tornando universitários, trabalhadores, procurando empregos decentes, carros decentes, bocetas decentes, enquanto fazem compras em mercados de atacado, junto com a morte que tem cara de velhas senhoras sentadas na calçada a falar mal do vizinho maconheiro às 3 da tarde de uma quinta qualquer.

Em algum lugar nos perdemos, e meu pai sabe disso mais que eu - penso, enquanto saio da frente do espelho com os olhos marejados e o nariz entupido.

Sim, ele sabe de alguma coisa.






Tenho muito medo
das folhas mortas,
medo dos prados
cheios de orvalho.
eu vou dormir;
se não me despertas,
deixarei a teu lado meu coração frio.

O que é isso que soa
bem longe ?
Amor. O vento nas vidraças,
amor meu !

Pus em ti colares
com gemas de aurora.
Por que me abandonas
neste caminho ?
Se vais muito longe,
meu pássaro chora
e a verde vinha
não dará seu vinho.

O que é isso que soa
bem longe ?
Amor. O vento nas vidraças,
amor meu !

Nunca saberás,
esfinge de neve,
o muito que eu
haveria de te querer
essas madrugadas
quando chove
e no ramo seco
se desfaz o ninho.

O que é isso que soa
bem longe ?
Amor. O vento nas vidraças,
amor meu 
.

Frederico Garcia Lorca.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Te esperando como quem espera Cristo com devoção.
Ansioso e medroso.

Te esperando como adolescente que espera 
a primeira namoradinha. O primeiro beijo
o coração lateja na altura da garganta
as mãos suando, olhando pros lados
e tentando se distrair com os carros
que passam e com os três pássaros
que se esfregam na poça d'água.

Te espero como quem espera luz
em dias terrivelmente negros.

Te espero como quem espera Cristo com devoção.
mas ele é uma ideia de dois mil anos atrás
não trará salvação para quem o esperar.

Agora, só você pode me salvar
Absorver meus pecados
me livrar de dias assustadores e sórdidos.

Até que, comprar frutas frescas numa manhã de domingo
ou sentar na beira do rio com um cigarro, sejam feitos sem esforço.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Assim é o amor, pensei. Por ela, que não me quis, eu trocaria todas as pessoas que me quiseram sem restrições.

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Com o baixo ventre do Texas e suas mulheres malucas com cicatrizes que não irão desaparecer, que choram e te fodem, te abandonam, escrevem cartas familiares todo natal, apesar de você ser agora um estranho. Não vai te deixar esquecer. Bruegel, as moscas, você lá fora defronte à janela, a perda e o terror, a tristeza e o fracasso, o teatro, a grosseria, todas as nossas vidas desmoronando, se reerguendo, fingindo que tá tudo bem, arreganhando os dentes, soluçando. Nós limpamos os nossos cuzinhos e os da outra espécie. 

Charles B.

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Dormi nas ruas, conhecendo esse país
peguei caronas, adormeci nas lonas
fui pra onde quis, dormi, sorri, bebi.

Amei garotos e desejei garotas
beijei a boca dos meninos
estuprei belos corpos femininos
tudo intenso e tão desprovido de labor.

Dormi nas ruas e pedi comida
não tive dinheiro nem pra uma dormida
mas me senti feliz como nunca antes na vida.

Conheci renegados, degradados
destruídos por uma sociedade esquisita
mas que tinham mais estilo que qualquer
bem sucedido da vila Maria.

Senti o medo dos becos sem luz
cheirei o pó da cruz de Jesus
gozei na boca vermelha
conheci as praças vazias
chorei a dor de todas as feridas.






terça-feira, 27 de novembro de 2012

Assim que a gente entrega a alma, tudo continua com mortal certeza, mesmo no meio do caos. Desde o princípio, jamais passou de outra coisa que não o caos: um fluido que me envolvia, que eu respirava pelas guelras. Nos substratos, onde a lua brilhava constante e opaca, era liso e fecundante; acima, confusa vozearia e discórdia. Em tudo eu via logo um oposto, uma contradição, e entre o real e irreal, a ironia, o paradoxo. Eu era o meu pior inimigo. Não desejava fazer nada que fosse melhor não fazer. Mesmo em criança, quando não me faltava nada, queria morrer: queria render-me porque não via sentido em lutar. Sentia que nada se provaria, consubstanciaria, somaria ou subtrairia pela continuação de uma existência que eu não pedira. Todos á minha volta eram um fracasso, ou, se não, ridículos. Sobretudo os bem-sucedidos. Estes me entediavam até as lágrimas. Eu era excessivamente compreensivo, mas não por simpatia. Era uma qualidade totalmente negativa, uma fraqueza que desabrochava à simples visão da infelicidade humana. Jamais ajudei a quem quer que fosse esperando que isso fizesse algum bem; ajudava porque não podia agir de outro modo. Parecia-me fútil querer mudar a condição das coisas; convencera-me de que nada se alteraria, a não ser uma mudança de opinião, e quem conseguiria mudar opiniões dos homens? De vez em quando, um amigo se convertia: coisa que me dava engulhos. Eu não precisava mais de Deus do que Ele de mim, e se houvesse um Deus, dizia-me muitas vezes, eu O enfrentaria com toda calma e cuspiria em Sua cara,

Henry Miller.


segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Um velho vem esbaforido e senta ao meu lado, parece decidido. Pela sua aparência e falta de fôlego, imaginei que ele estivesse andando por anos para chegar até aqui. Ele me examinou como se procurasse traços familiares em mim. Não tive medo. Por que teria, afinal?

Continuei olhando pro horizonte do mar e sentindo a brisa leve que arrepiava. O céu de tão azul e sem nuvens parecia infinito. O velho coloca um cigarro amassado na boca e bate nos bolsos como se estivesse procurando fogo, não me importo. Ele finalmente acha o isqueiro, faz uma concha com a mão esquerda e cada que vez que risca a pedra ruga o rosto para se concentrar.

O velho desconhecido levanta, oferece um sorriso cansado e continua sua caminhada.
Observo ele se afastando com o olhar de quem entendeu o recado.

O céu de tão azul e e sem nuvens parecia perfeito, sem textura.

Pela segunda vez na minha vida, sinto entender plenamente o que é felicidade.

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Sim, eu tenho uma alma.

A sua alma, dança?
Tenho uma alma inquieta, desconfiada
essa nébula dentro de mim, que me faz
ter vontade de gritar.

O doce grito da alma

Desesperado, descabelado
um grito inaudito,
que reverbera em todos becos e ruas
uma alma que só descansa
quando sente o grito da tua.

Tenho uma alma pesada, viciada
enquanto os cachorros da vizinha se matam
e o vigia noturno do prédio na esquina se suicida
eu tento esquecê-la.

Tento ser um pouco, só de carne e osso.
Mas sou carne, osso e sentimentos.

Essa alma surrupiada me diz,
que nunca fui bom no que fiz
e sinto ela indo embora
cada vez que assopro mais um trago do cigarro.

Sim! Eu tenho uma alma!
E a sinto lajetar no meio das pernas
quando te vejo, deitada de bruços,
só de calcinha, sobre meu braço esquerdo.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012


Olhei para trás de relance e ela continuava linda de alguma forma, no ódio do seu pútrido amor.

Charles B.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Tudo que eu queria era parar de me sentir mal quando as coisas davam errado. Mas isso estava ficando cada vez mais freqüente e comecei a questionar minha sorte, ou falta dela.

Ultimamente nao tenho tido vontade nem de mudar de posição na cama, imagina levantar dela uma hora. Tudo começa a dar errado e o único pensamento que me persegue, insiste: "Você nao e bom o suficiente. Você nao e bom o suficiente em nada."

Eu sempre quis ser bom em alguma coisa, já fiz de tudo, mas nada dura mais que algumas semanas. Tentei jogar bola, aprender um instrumento, costurar, arrancar dentes, dar aula. Tentei ate o halterofilismo. Admiro atletas, artistas, trabalhadores, pessoas que fazem a vinte anos a mesma coisa e se identificam com isso e se completam com isso e conseguem, ao mesmo tempo, gerir sua sobrevivência e evoluir no que faz.

Mas agora, eu nao quero saber o que e ou o que nao e bom pra mim. Quero apenas entender o que estou sentindo. E essa a questão? Atletas, artistas e trabalhadores também passam por isso? Lógico que sim... Mas eles tem com o que se preocupar e o que fazer. Eu apenas começo a ficar deprimido e percebo que minha vida nao vai a lugar nenhum.




sábado, 3 de novembro de 2012

"Peguei minha garrafa e fui pro meu quarto. Fiquei só de cueca e deitei na cama. Nada estava em sintonia, nunca. As pessoas vão se agarrando às cegas a tudo que existe: comunismo, comida natural, zen, surf, balé, hipnotismo, encontros grupais, orgias, ciclismo, ervas, catolicismo, halterofilismo, viagens, retiros, vegetarianismo, Índia, pintura, literatura, escultura, música, carros, mochila, ioga, cópula, jogo, bebida, andar por aí, iogurte congelado, Beethoven, Bach, Buda, Cristo, heroína, suco de cenoura, suicídio, roupas feitas à mão, vôos a jato, Nova York, e aí tudo se evapora, se rompe em pedaços. As pessoas têm de achar o que fazer enquanto esperam a morte. Acho legal ter uma escolha." 

Charles B.

domingo, 28 de outubro de 2012

Deitado no chao desse quarto
Mais uma noite de lua pesada
Tento pensar em algo,
 além desse desejo de te-la 
entre as minhas pernas.

Tento pensar no amor
Nesse sentimento tao desumano
E tao presente.

Penso nos casos resolvidos
A insegurança genial de voltarie
A doce sedução de Emilie Chatelet

A garrafa já secou,
Cheia de cor, odor, sabor
Inebriando os pensamentos.

Aperto os olhos, só pra imagina-lá novamente
Mas os pensamentos seguem vagos
E as lembranças distorcidas
Sinto que a onda passou e continuei sentado na areia.

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

O que eu adoro em ti 
Não é a tua beleza 
A beleza é em nós que existe 
A beleza é um conceito 
E a beleza é triste 
Não é triste em si 
Mas pelo que há nela 
De fragilidade e incerteza 

O que eu adoro em ti 
Não é a tua inteligência 
Não é o teu espírito sutil 
Tão ágil e tão luminoso 
Ave solta no céu matinal da montanha 
Nem é a tua ciência 
Do coração dos homens e das coisas. 

O que eu adoro em ti 
Não é a tua graça musical 
Sucessiva e renovada a cada momento 
Graça aérea como teu próprio momento 
Graça que perturba e que satisfaz 

O que eu adoro em ti 
Não é a mãe que já perdi 
E nem meu pai 

O que eu adoro em tua natureza 
Não é o profundo instinto matinal 
Em teu flanco aberto como uma ferida 
Nem a tua pureza. Nem a tua impureza. 

O que adoro em ti lastima-me e consola-me: 
O que eu adoro em ti é a vida!


Manuel Bandeira.

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

sábado, 13 de outubro de 2012

Hoje pensei na morte
e suas mil faces aparentes

Pensei em vocês
no ir e vir constante

E senti o concílio
deitando sobre o manto
que agora se estende e ocupa
um bom terço dessa inclinação
tão confusa, tão inclinada
quase na vertical.

domingo, 15 de julho de 2012

 Eu coleciono
 Amores e fracassos.
 Andei por um caminho escuro
 A largos passos;
 Me lancei à sorte,
 Como quem procura a morte.


Caí na lama cristalina
 Dos perdidos,
 No vício saboroso
 Dos malditos;
 Delirei;
Gozei prazeres diversos
 Até o fim;

Deixei em camas diversas
 Um pedaço de mim.
Chorei, gargalhei;
 Morri um pouco,
 Mas também matei;


Bebi todos os licores,
 Todos os vinhos,
 Cachaças,
 Whiskys...
 Provei todos os sabores,
 Dissabores;
 Cheirei horrores...

Comi uma infinidade
 De amores.
 Mas não digo que não fui feliz.


Hoje busco equilíbrio
 Sem medos,
 Trapaças,
 Rancores;
Encontro nela
 O perfume da vida;
 Vou e volto ao néctar
 Como fazem os beija-flores;


 Trago como troféu
 A sabedoria das camas,
 A satisfação das damas,
 A solidão das ruas,
 A devassidão das noites,
 E uma poesia underground
 Que a vida tatuou em mim.


 Não me acho “mais”,
 Não me vejo “menos”;
 Sou alguém que aprendeu,
 De nada muito,
 Mas um pouco de tudo que viveu.

Levei a vida meio na lábia,
 Nos serviços prestados
 A mulheres que nem sei,
 Mulheres que jamais amei.
Mas hoje
 Eu estou aqui de pé.
 Alguns me amam,
 Outros me odeiam;

Mas a minha vida sempre foi assim,
 Então que seja como é.
 Eu não preciso provar mais nada,
 Nem preciso de aprovação
 De ninguém.


Eu sou o que sou;
 Sem orgulho,
 Nem vergonha;
 Não recebo ordens,
 Faço o que me convém.
E aquele que tiver coragem,
 Que viva a vida
 Como realmente gosta;
 Que assuma, se exponha.

Eu tenho uma memória pra deixar,
 Uma história pra contar,
 E uma experiência de vida pra passar.
 Não sou como um coitado
 Que dá um cochilo
 E quer sonhar;


 E sonha.


Me despeço de todos e até a volta.

Não é verdade que você começa a vida como uma criancinha crédula sob a proteção paterna? E então chega o dia da indiferença, em que o cara descobre que é um desgraçado, um miserável, fraco, cego, nu e com a aparência de um fantasma fatigado. Fatídico avança trêmulo por uma vida de pesadelo."
A grandeza do homem consiste em ser uma ponte e não uma meta; o que se pode amar no homem, é ser ele uma ascensão e um declínio.

Amo aos que não sabem viver senão com a condição de perecer, porque, perecendo, eles passam além.

Amo aos repletos de um grande desprezo, porque trazem em si o respeito supremo, e são flechas do desejo dirigidas para a outra margem.

Amo aos que não necessitam procurar além das estrelas uma razão para perecer e oferecer-se em sacrifício, mas que se imolam à terra, para que a terra pertença um dia ao Super-homem.

Amo ao que vive apenas para conhecer e quer conhecer para permitir que um dia viva o Super-homem. Essa é a sua maneira de querer a própria perda.

Amo ao que trabalha e inventa, a fim de erigir um dia a morada do Super-homem, e preparar para ele a terra, os animais e as plantas. Essa é a sua maneira de querer a própria perda.

Amo ao que ama a sua virtude, porque a virtude é vontade de perecer e flecha do desejo.

Amo ao que não reserva para si nem uma gota de seu espírito, mas que quer ser totalmente o espírito de sua virtude, porque assim, como Espírito, atravessa a ponte.

Amo ao que transforma sua virtude em inclinação e em destino; é assim que, por amor de sua virtude, quererá viver ainda, e não mais viver.

Amo ao que não quer ter demasiadas virtudes. Uma virtude é mais virtude do que duas, é um nó mais forte em que se aferra o destino.

Amo aquele cuja alma pródiga recusa qualquer gratidão, nem devolve o que quer que seja; porque dá sempre e nada reserva para si.

Amo ao que se envergonha, quando vê os dados caírem a seu favor, e pergunta a si mesmo então: "Sou um trapaceiro?", porque sua vontade é perecer.

Amo ao que lança ante suas obras palavras de ouro e cumpre sempre mais do que promete, porque sua vontade é perecer.

Amo ao que previamente justifica os homens vindouros, e redime os do passado, porque sua vontade é perecer com os do presente.

Amo ao que castiga a seu Deus, porque ama a seu Deus, porque morrerá da cólera de seu Deus.

Amo aquele cuja alma é profunda, até em sua ferida, e que pode morrer de qualquer acidente, porque é de boa vontade que passará a ponte.

Amo aquele cuja alma se desborda a ponto de esquecer a si mesmo e de todas cousas que traz consigo, porque assim todas as cousas causarão sua ruína.

Amo ao livre de coração e de espírito, porque assim sua cabeça serve de entranhas ao coração, e será o coração que o fará perecer.

Amo a todos os que são como essas gotas pesadas que caem, uma a uma, da sombria nuvem suspensa sobre os homens; anunciam que é próximo o relâmpago; e eles perecem por serem seus anunciadores.

sábado, 14 de julho de 2012

Quanto mais fico indeciso, mais as coisas se decidem por elas mesmas. E isso é fantástico! Nada como o acaso, a superficialidade nua e ingênua de cada acontecimento. Ultimamente tenho sentido prazeres momentâneos e revigorantes. Lembro da minha infância, quando fazia barquinhos de dobraduras em folhas de ofício. Eu passava a semana produzindo barcos de várias cores e vários tipos de dobraduras. Uns eram pequenos e pareciam ser mais frágeis, por exigirem mais cautela e concentração, fazia-os de noite, quando todos estavam dormindo. Outros barcos eram enormes. de duas ou três folhas. Grandes e imponentes, eu me sentia orgulhoso por eles.


Nos finais de semana, eu fugia para o rio, que naquela época ainda era limpo e frequentável. Ah, não posso deixar passar em branco as lembranças que o rio me traz, me perdoem por não seguir uma história linear e por não ser tão objetivo, mas ultimamente tenho sido muito dramático e isso faz parte de mim. Mas o rio, sim! O rio São Francisco era incrível, uso a frase no passado pois há muito tempo que não volto ao sertão - mas tenho certeza que ele continua majestoso, mesmo com a destruição que o progresso causa - Lembro que quando tinha em media 8 anos, antes de criar barcos, gostava de sentar à beira do rio. Saia da escola depressa e caminhava algumas centenas de metros até a orla. Pulava algumas cercas de proteção, sentava sempre na mesma pedra (que ainda deve ter meu nome talhado) e ficava olhando fixamente no olho do rio. Um redemoinho que se formava sutilmente no centro das águas, por longos minutos,  enquanto a água girava vagarosamente em torno de si mesma, eu pensava fantasiosamente que aquele era o olho do rio que se abria sempre que eu sentava na mesma pedra. 


Comecei a brincar com os barcos um pouco depois, não lembro ao certo, talvez dez ou doze anos, tinha o desejo infantil de alcançar o olho do rio. Aos sábados fazia o mesmo percurso de sempre. Com alguns barcos e uns biscoitos na mochila que ficava muito grande nas minhas costas, corria alegre ao rio. Os barcos menores afundavam mais rápido mas eram mais velozes. Os grandes flutuavam como se de metal fossem, mas nenhum conseguia alcançar o olho, nenhum nunca conseguiu alcançar o olho. Hoje, um pouco mais velho, me pergunto: "Se algum barquinho tivesse alcançado o redemoinho? O que aconteceria?" Talvez eu me sentisse satisfeito e parasse de fazê-los. Talvez eu achasse que foi muito fácil e procuraria outros desafios ou simplesmente iria continuar sentado na pedra, sentindo-me feliz e calmo em meio a toda natureza que me circundava.


A verdade é que até hoje crio barcos só que com dimensões diferentes. Alguns mal me cabem de tão pessoais, outros são incomensuráveis, verdadeiros transatlânticos que carregam mais do que eu podia imaginar, cargueiros gigantes que passam dias à deriva no meio do nada, sem rumo, nem prumo, nem bússola. Nem o sol aparece para guiar corretamente e apontar leste ou oeste. 


Não se pode chegar ao olho.

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Vocês já viram deus?
Uma mandala?
Um anjo simétrico?


Estamos devendo a nossa última visão
de doença venérea
O colo de Colombo encheu-se de morte verde.


Toquei a sua bunda, e a morte sorriu...


Este mundo, um monstro de energia
sem princípio nem fim


Sem um aumento ou rendimento
Sem desvendar nada.


Este mundo é a sede do poder
e nada mais.

domingo, 24 de junho de 2012

"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade

Com que rasguei o ventre à minha mãe


Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...


Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou


Sei que não vou por aí!