terça-feira, 13 de setembro de 2016

Amores contrariados pela desgraça e pelas grandes distâncias são como amores de marinheiros, não há jeito, são irrefutáveis e são um sucesso. Como a vida não passa de um delírio abarrotado de mentiras, quanto mais longe estivermos e quanto mais pudermos botar mentiras ali dentro, mais então ficaremos felizes, é natural e é sempre assim. A verdade não é comestível.

Inventamos desculpas esfarrapadas, protegendo a própria carcaça enquanto ainda pode se manter de pé. Os deslizes alheios são intoleráveis, mesmo que os próprios sejam mais podres, imundos. Agora é fácil nos contarem a respeito de Jesus Cristo, será que ele ia no banheiro na frente de todo mundo, Jesus Cristo? Tenho cá pra mim que aquilo não ia durar muito tempo, o troço dele, se fizesse cocô em público. Pouquíssima presença. O resto é lorota.

Depois de anos, repensando nisso, acontece de querermos recuperá-las, as palavras, que algumas pessoas disseram, e as próprias palavras, para perguntar o que quiseram dizer.... Mas já se foram! Não tínhamos instrução suficiente para compreendê-las.... Gostaríamos de saber, assim, só para saber, se desde então não mudaram de opinião, sabe-se lá. Mas é de fato tarde demais. Acabou-se! Ninguém sabe mais delas. A gente tenta então continuar nosso caminho sozinho, na noite. Perdemos nossos verdadeiros companheiros. Não lhes dizemos a pergunta certa, a verdadeira, quando era tempo. Ao lado deles não sabíamos. Homem perdido. Estamos sempre atrasados. Tudo isso são arrependimentos que não enchem barriga.

terça-feira, 9 de agosto de 2016

  Ton era um garoto muito criativo e aos 10 anos de idade já desenhava muito bem. Os pais não podiam receber visitas que já iam gritando pelo menino para que ele mostrasse seus desenhos e sua precoce habilidade com os lápis de cor. De seu quarto, Ton escutava os gritos do pai e já sabia o que devia fazer, descia lentamente as escadas com os caderninhos debaixo do braço e ia até a sala com cara de poucos amigos.


-Oh, que bonito! Foi você mesmo que fez?

- É um belo desenho, Ton!


  Os pais regojizavam de orgulho e já espelhavam nele mil e uma possibilidades de ter sucesso na vida. Coisa que nunca tiveram. Ton não gostava muito daquilo, sempre foi um garoto tímido, até mesmo estranho e não achava nada demais nos dinossauros e tanques de guerra. Enquanto as visitas iam folheando seu pequeno caderninho ficava prostrado a beira do sofá com cara de tédio e desanimado. Na verdade só queria voltar para o quarto e terminar a guerra entre os índios apache e os bravos soldadinhos de plástico.



  Na escola era a mesma coisa, as professorinhas velhas e carrancudas viviam a encher seu saco perguntando o que havia desenhado de novo, o garoto se limitava a responder duas ou três coisas e voltava para o seu lugar. Eram poucas as tarefas em sua classe, logo as professoras pediam aos alunos que trouxessem coisas de casa para que mostrassem aos coleguinhas e a partir disso desenvolverem algum tipo de atividade. Alguns levavam fotografias, outros brinquedos e até mesmo animais. Uma vez, Lucinha, que sentava duas cadeiras atrás de Ton, levou um vibrador que pegara no armário da mãe. Esperou sua vez de mostrar o que tinha levado e quando acionada começou a tirar aquele enorme cacete cor de pele da bolsinha. Ton olhou para trás e reconheceu o objeto. A professora ao perceber do que se tratava, disparou em direção dela feito uma flecha e empurrou de volta para dentro da mochila aquela grossa rola de plástico. -"Pelo amor de deus garota!" "Você sabe o que..... " tentava a velha professora organizar as palavras. -"Leve isso para casa e pelo amor de deus guarde onde achou." Talvez fizesse muito tempo que a professora não entrava em contato com um daqueles e por isso a reação eufórica e afobada.



  Os alunos também gostavam bastante das aulinhas de literatura. O professor, um senhor grisalho e dentuço que usava suspensório e tinha hábitos engraçados costumava pedir aos alunos que escrevessem alguma coisa em casa para que na aula seguinte todos pudessem sentar em círculo e cada um ler a sua. As crianças são pequenos reservatórios de criatividade e imaginação, transbordam até o topo!

  Ton despretensiosamente não gostava de fazer as tarefas dada pelos professores e realmente achava tudo aquilo idiota e muito fácil, com frequência a coordenação o repreendia ou ligavam para seus pais na intenção de relatar tal comportamento descabido do rapaz, isso gerava uma série de brincadeirinhas entre os garotos mais saidinhos que não perdiam uma chance para tirar um sarro de alguém.

  Até que um dia ele resolveu participar da roda de leitura do professor dentuço. Na noite que antecedia a aula trancou-se no quarto e sentou-se em sua mesinha, afastou os desenhos, atirou o pajé na cama e o general para perto da porta e começou a escrever o que vinha na cabeça. Lembrou de quando era mais novo e a família saiu de férias para uma praia, de uma prima que um dia se perdeu na mata, lembrou também da vez que foi em um circo e todos começaram a correr por que acidentalmente a peruca do palhaço pegou fogo e também recordou em câmera lenta da hilária cena da professora atravessando a sala como se nada mais importasse na vida para enfiar de volta uma grande rola de plástico na mochila da Lucinha, como se o aparecimento daquela coisa profana fosse corromper eternamente a vida dos fedelhos. Gostou da experiência e foi dormir feliz.

  Afastaram as cadeiras com seus bracinhos e fizeram um círculo na sala. Fred começou a ler e era uma história sobre coxinhas alienígenas que invadiam a cantina da escola, os meninos adoravam e urravam até o dentuço pedir calma. E assim foram lendo um por um, Lucinha escreveu sobre os pais brigando, Amanda amava animais e em suas histórias eles falavam e agiam como seres humanos, até que chegou a vez do Ton e para surpresa de todos ele tirou uma página meio amassada do caderno e começou a ler.

  Em pouco tempo se desarmaram, até os saidinhos prestavam atenção. Era como um pequeno milagre, algo realmente muito engraçado e trágico que produzia diversas sensações nas outras crianças, ele ia lendo e lendo sobre um ser mágico que morava em uma casa no meio da floresta e apesar de ser mágico e ter vários poderes legais se sentia muito triste por que não tinha ninguém para mostrar tudo que era capaz de fazer. O feiticeiro desconsolado transformava árvores em grandes tigelas de doce de leite e chorava.Ficaram todos encantados e atentos para ouvir tudo até o final. Ao término da aula correram para o pátio e ficaram brincando de mágicos e super poderes.

  Aquilo encantou o garoto Ton, nunca mais seria o mesmo. Todo dia depois da aula ele corria para casa pensando em frases e decorando piadas. Subia as escadas até o quarto e o espacinho na mesa já estava no tamanho certo. As vezes escutava os gritos que vinham da sala e já nem se importava. Tinha achado o que precisava. Já não queria pintar nem desenhar, na verdade nem lembrava disso,  apenas escrevia e enquanto ia brincando até podia ouvir os risos contentes dos coleguinhas ou mesmo imaginar o alegre e bonito sorriso de Duda ao escutar a próxima historia.

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Revisitando passados
uma fenda estreita no tempo
poeira assentando lentamente

um corpo entregue às traças
copos de vinho e fumaça
uma mente boiando em azul imenso

O presente é inevitável
acontecimentos cotidianos
decepção é certa
arrependimentos também

Folheio livros de páginas vazias
que eu achava que tinha escrito
saltei eventos, evito encontros

Quando achei que tudo estava terrível
as coisas estavam indo muito bem
era só a vida que sempre fez suas brincadeiras

Uma entidade separada do cara que eu era antes

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

O melhor momento do dia a caminho da sala de aula é quando consigo realizar todo trajeto desde a entrada pelo portão principal da universidade até o restaurante universitário sem encontrar viva alma conhecida. Apesar da eterna procura por pessoas que de alguma forma deem sentido a esse mundo ou aos afazeres diários, me encontro sempre pairando no universo da obviedade e cada um que se aproxima de mim parece mais estático que os animais empalhados que eu gostava de ver em museus quando criança, apesar de possuírem todos membros em perfeito estado e se acharem em total sanidade mental.

Prefiro caminhar e dar por fim o que tenho que fazer, por isso as vezes desvio para esquerda ou direita, dependendo do trajeto contrário que vem fazendo alguém que eu possa conhecer e escapo dos indesejáveis e repetitivos cumprimentos que são tão angustiantes quanto o meu gato a miar por estar condenado a passar o resto de sua vida a atrofiar seus instintos animais preso nesse apartamento minúsculo.

Certo dia acordei estranho, suando mais que o normal e a tremer o corpo todo, feito criança quando contrai as primeiras doencinhas e chora de febre. Demorei a desvencilhar o lençol do meu raquítico corpo mas sabia que precisava fazer isso para cumprir com as obrigações diárias. Diante do espelho senti uma repulsa amarga e um sentimento de vazio, de vazio mesmo, não um vazio de emoções ou algo melancólico, eu senti meu corpo vazio, sem entranhas nem fígado nem estômago nem coração só a pele visível e um sopro sombrio ocupando o que me sustentava em pé. Por deus, nem vivo nem morto e com duas bolas penduradas entre as pernas. Senti vontade de estraçalhar o espelho mas não tive coragem e isso só fez aumentar minha ineficiência que sempre se fez presente em qualquer coisa que eu tente fazer.

Ao atravessar o portão já me encontrava dentro da universidade e fui andando ao meu destino, desviando dos buracos e das pessoas. Não lembro detalhadamente do céu mas provavelmente estava enegrecido e com nuvens densas, lembro do cheiro nostálgico da relva molhada com a chuva da noite anterior e de duas crianças de sete ou oito anos encapuzadas capinando o mato em frente ao bloco de ciências humanas. 

Já na fila quilométrica onde os estudantes se aglutinam sem questionar pra pegar a boia tentei me concentrar em não escutar ou pelo menos não entender (isso era mais fácil) as conversas sem nexo ou final lógico da juventude comprometida em ser o futuro do país, mas era impossível.

- É sério, ele falou isso! Que eu era gorda e que meus dentes são tortos.. Ha ha

- Que vibe em?

-Gratidão.

- Namastê


- O Brasil está assim por causa desse monte de gay que quer empurrar sua doutrina gayzista e destruir a família.

- Essa carne fede a cavalo. Deve ser de cavalo mesmo.

Almocei e fiz o trajeto até a sala de aula, me sentia um pouco melhor e disposto até mesmo a arriscar uma prosa ou outra no caminho. Talvez o problema esteja comigo, comecei a pensar, e talvez seja hora também de me encaixar mais nas coisas ao redor ao invés de querer encaixar os outros ao meu mundo.

Chegando em casa liguei o rádio e me estendi na cama esperando não acordar tão mal novamente.
 - É tudo uma questão de adaptação, sempre disse a minha mãe. - É preciso engolir alguns sapos para se conseguir o que quer. Se ela tivesse dito que era preciso engolir baldes de merda todos os dias só para sair da cama eu não acreditaria, porém ela nunca estaria tão certa.





quinta-feira, 26 de junho de 2014

Na voz escapa o que a mente imagina
no teu corpo, esquinas, se perdem ruas
e sobram as horas e falta postura

No riso que é dado transborda ternura
e encolhem as aretas e alarga a rasura
e nasce o que é belo e extingue a feiura

No corpo por perto surge o teto
No chão não falta onde pisar
paredes erguidas em cores
sem prender, sem portas pra entrar

E correm os passos
surgem os laços
e correm ainda mais os passos
mas dessa vez sem poesia, sem rima.

Desconcertante
Sem jeito
Olhando pra trás.

sábado, 17 de maio de 2014



François Villon


Morro de sede quase ao pé da fonte,
Quente qual fogo, mas batendo os dentes;
Em meu país vivo além do Horizonte;
Junto a um braseiro tremo e fico ardente;
Nu como um verme. O traje: um presidente;
Rio no pranto e espero sem esperança;
Conforto acho na desesperança,
E alegro-me sem ter prazer algum;
tenho o poder sem força ou segurança;
E sou bem vindo a todos e a nenhum.

Só me é certo algo com que eu não conte;
nada é obscuro, exceto o que é evidente;
E sem dúvidas, fora as que defronte,
Tomo a ciência por mero acidente;
Conquisto tudo e fico dependente
Digo "Boa noite" se a aurora avança;
Deito-me sem controle em confiança;
Tenho alguns bens, mas sem vintém algum;
Sou um herdeiro mas serm ter herança,
E sou bem-vindo a todos e a nenhum

Descuido-me de tudo e suo a fronte
Para ter bens, sem ter um pretendente;
Com quem mais me afague, me confronte,
Quem mais me é veraz é quem mais mente;
É meu amigo que diz procedente
De um cisne alvo e um corvo a semelhança;
Em quem me nega enxergo uma aliança;
A patranha e a verdade acho comum;
recordo tudo sem a menor lembrança
E sou bem-vindo a todos e a nenhum.

Príncipe brando: se isso não vos cansa,
De tudo eu sei, e a mente não alcança;
Sou faccioso e sigo a lei comum.
Que faço? o Quê? dos meus bens a cobrança,
E sou bem-vindo a todos e a nenhum.


(trad. Sebastião Uchoa Leite)

terça-feira, 11 de março de 2014

Movimentos são criados por quem não sabe escrever, para descrever quem sabe... A cidade é cheia de charlatões que não sabem escrever. Escritor de verdade deve estar na cama, estar nas trincheiras e nos piores lugares..