Prefiro caminhar e dar por fim o que tenho que fazer, por isso as vezes desvio para esquerda ou direita, dependendo do trajeto contrário que vem fazendo alguém que eu possa conhecer e escapo dos indesejáveis e repetitivos cumprimentos que são tão angustiantes quanto o meu gato a miar por estar condenado a passar o resto de sua vida a atrofiar seus instintos animais preso nesse apartamento minúsculo.
Certo dia acordei estranho, suando mais que o normal e a tremer o corpo todo, feito criança quando contrai as primeiras doencinhas e chora de febre. Demorei a desvencilhar o lençol do meu raquítico corpo mas sabia que precisava fazer isso para cumprir com as obrigações diárias. Diante do espelho senti uma repulsa amarga e um sentimento de vazio, de vazio mesmo, não um vazio de emoções ou algo melancólico, eu senti meu corpo vazio, sem entranhas nem fígado nem estômago nem coração só a pele visível e um sopro sombrio ocupando o que me sustentava em pé. Por deus, nem vivo nem morto e com duas bolas penduradas entre as pernas. Senti vontade de estraçalhar o espelho mas não tive coragem e isso só fez aumentar minha ineficiência que sempre se fez presente em qualquer coisa que eu tente fazer.
Ao atravessar o portão já me encontrava dentro da universidade e fui andando ao meu destino, desviando dos buracos e das pessoas. Não lembro detalhadamente do céu mas provavelmente estava enegrecido e com nuvens densas, lembro do cheiro nostálgico da relva molhada com a chuva da noite anterior e de duas crianças de sete ou oito anos encapuzadas capinando o mato em frente ao bloco de ciências humanas.
Já na fila quilométrica onde os estudantes se aglutinam sem questionar pra pegar a boia tentei me concentrar em não escutar ou pelo menos não entender (isso era mais fácil) as conversas sem nexo ou final lógico da juventude comprometida em ser o futuro do país, mas era impossível.
- É sério, ele falou isso! Que eu era gorda e que meus dentes são tortos.. Ha ha
- Que vibe em?
-Gratidão.
- Namastê
- O Brasil está assim por causa desse monte de gay que quer empurrar sua doutrina gayzista e destruir a família.
- Essa carne fede a cavalo. Deve ser de cavalo mesmo.
Almocei e fiz o trajeto até a sala de aula, me sentia um pouco melhor e disposto até mesmo a arriscar uma prosa ou outra no caminho. Talvez o problema esteja comigo, comecei a pensar, e talvez seja hora também de me encaixar mais nas coisas ao redor ao invés de querer encaixar os outros ao meu mundo.
Chegando em casa liguei o rádio e me estendi na cama esperando não acordar tão mal novamente.
- É tudo uma questão de adaptação, sempre disse a minha mãe. - É preciso engolir alguns sapos para se conseguir o que quer. Se ela tivesse dito que era preciso engolir baldes de merda todos os dias só para sair da cama eu não acreditaria, porém ela nunca estaria tão certa.