quarta-feira, 5 de outubro de 2016

  Tenho pensado sobre o papel da arte e os diversos meios que temos de expressar sentimentos. O ato de escrever ou compor uma música, por exemplo, é uma forma de manifestação dos sentidos que não encontram significação pela conversação cotidiana.Nós não criamos o pensamento, ele é que nos visita e se externaliza de alguma maneira. É nessa possibilidade de externalização dos sentimentos atrelado a arte que tento descobrir alguma lógica. Esse meio de comunicação que o ser humano encontrou para ir além das palavras, que transgride as barrerias linguísticas e que pode ter significado semelhante tanto para mim como para um chinês que vive do outro lado do mudo e possui uma cultura completamente diferente da minha.

  A música ou qualquer outro tipo de arte é antes de tudo uma força da natureza na sua forma mais bruta. Assim como uma árvore cresce em terreno favorável e desenvolve toda sua máxima potencialidade, a arte é a expressão da natureza em si mesma, é o encontro direto do criador com a criatura, seja ele nomeado de deus, universo ou qualquer outra coisa.

  É a partir desse momento que estamos aptos a ter contato com essa inteligência já não estremada e que por isso permite uma outra percepção de coisas que até então superficiais. Ou seja, o processo de aprender a tocar algum instrumento, não é apenas sobre executar os movimentos corretos ou saber ler tablaturas, mas está se aprendendo nesse momento uma nova linguagem que permite comunicações que antes eram limitadas. Gradualmente compreende-se melhor essa nova forma de expressão e isso se reflete no sentimento que é passado pelo instrumento.

  Eu uso muito o exemplo da música pelo fato de que é o que está mais próximo de mim. Aprendi a tocar violão alguns anos atrás. Nunca fui bom e confesso que tive dificuldades no processo até o ponto de desistir e me contentar apenas com o básico. Porém confesso também que quando comecei a conseguir fazer esse básico me senti muito bem pois a música passou a ter um outro significado para mim. Comecei a escutar as músicas de um outro modo, identificando os sons, os tempos, as batidas. Cada instrumento passou a ter um significado e uma linguagem própria onde antes só quem se comunicava era a letra. E olhe que eu não me aprofundei nisso, nunca estudei música e o pouco que sei foi por curiosidade minha.

  Escrito a partir de rápidas reflexões noturnas eu concluo que um dos papéis da arte é esse, suprir a carência da expressão linguística para os sentimentos tão complexos que nós temos.

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

  A primeira vez que tive contato com Celine foi coisa de cinco anos atrás se mais uma vez não me decepciona a falha memória. Eu cursava história em uma universidade e andava mais perdido que uma formiga faminta em um piquenique.

  Contando os pormenores eu posso dizer que era algum dia útil da semana e eu me preparava para ir pegar um ônibus rumo a casa de uma garota com quem me relacionei na época. Relação conturbada por sinal, mas tentarei me ater a apenas um assunto. É sempre assim, começo falando de uma coisa e então já penso em outra, quando criança o médico disse que isso era por causa de um déficit de atenção seríssimo. Viu? Já falei sobre várias coisas. O médico nunca esteve tão certo. Vamos tentar recomeçar.

  Nessa época eu lia bastante. Passava horas nos alfarrábios da cidade pechinchando livros, garimpando estantes empoeiradas e esquecidas. Não saia de casa sem um livro debaixo do braço, era mais fácil esquecer de vestir a camisa que atravessar o portão sem algo para ler. Lia andando, no ônibus, na fila, comendo e também sonhava com as minha frases preferidas que fazia questão de decorar. Os que conviviam comigo sofriam com meus delírios literários. se me visitavam em casa eram obrigados a escutar por horas o que eu tinha a dizer sobre vários autores, eu declamava poesias e se estivesse bêbado então era impossível me aguentar.

  O principal resultado desse contínuo enlevo literário foi me inflamar a novas revoltas, me sentia louco, excêntrico, começava a me afastar dos mais próximos e a tratá-los com desprezo, realmente beirando o desespero. Em certo ponto fiquei definitivamente triste e infeliz, precisava mudar. Achava que com uma mudança de ares esse sentimento que me ensandecia poderia ser correspondido. De uma formiga perdida em um piquenique me tornei uma, das bem pequeninas, perdida no mundo, larguei tudo e fui embora, mas não por muito tempo. As primeiras fuga nunca dão certo.

  Tudo isso para contar que ao ler Viagem ao fim da noite de Celiné eu senti a mesma excitação e desespero e loucura daquele tempo em que decidi abandonar tudo e ir viver ao livre, me sustentar com minhas próprias mãos e descobrir o que o mundo e as pessoas me reservavam.

  E é exatamente isso, cada aventura de Bardamu era uma pérola achada, eu sofregava de um parágrafo para o outro, era como um intenso e sufocante mergulho. Todas as sensações estavam ali, fortes, pulsantes, cruas. O meu próprio miserável e egoísta mundo sendo recriado e tomando novas formas por todos os lados. Seu modo de escrever então é fascinante e apesar das traduções perderem um pouco do real sentido, o português e o francês são irmãos gêmeos por terem como origem o latim. Um dia estudarei francês para ler a obra original.

  Hoje eu terminei de lê-lo pela terceira ou quarta vez e a sensação é a sempre a mesma. Se um dia eu fingi intensamente ser Arturo Bandini, a partir dessa época tive mais um herói que de algum modo salvou minha vida, para o bem ou para o mau.

sábado, 1 de outubro de 2016

Sou bastante fiel na minha infidelidade, e, embora mudado, continuo igual, e a minha única ânsia é: Como posso ser útil ao mundo, será que não posso servir a alguma finalidade e ter alguma serventia, como fazer para aprender mais e estudar profundamente certos assuntos? Você vê, é isso o que me preocupa constantemente, e então me sinto aprisionado pela pobreza, excluído da participação em determinados trabalhos e certas coisas necessárias se encontram fora do meu alcance. Eis aí um motivo para não escapar à melancolia e ai se sente um vazio onde deveria haver amizade e fortes e sérias afeições, e um terrível desânimo rói a nossa própria energia moral, e o destino parece opor uma barreira aos instintos da afeição, e uma inundação de desgosto se levanta para nos sufocar. E exclama-se: "Até quando, meu Deus!"

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Hoje não quero questões!
Estou tão fresco, tão ligeiro;
A alegria e as canções
Inventei-as eu primeiro.
Por isso bebo! Pra baixo!
Tocai lá! Estou como um cacho!
Tu la detrás, vem aqui!
Toca lá! Foi bem assim.

Minha mulher dava berros,
Até a roupa me rasgou,
Lançou-me em rosto os meus erros,
Estafermo me chamou.
Mas eu bebo, bebo bem;
Tocai lá, bebei também!
Estafermos, é tocar!
Se tinir, logo emborcar.

Não digais que ando perdido!
Estou aqui porque me apraz;
Se não fiar o marido,
Fia a mulher ou o rapaz.
Beba eu sempre sem parar!
Sus, amigos, é tocar!
Uns aos outros, sem ter fim!
Desta vez foi bem assim.

O que me alegra e dá gosto
Posso sempre suceder:
Deixai-me aqui neste posto!
Já me não posso em pé ter.

Fausto.

domingo, 25 de setembro de 2016

    Aos domingos todas as tristezas do mundo se intensificam e não há playlist que dê um jeito nisso. Sabem todos aqueles que sofrem que a alegria é apenas uma sombra projetada pela dor, uma penumbra fina e sensível que realmente não dura muito tempo se exposta. Então, o que são as lembranças? O que são as lembranças de um domingo? Sol quente, vento constante,  ela deitada e meu colchão estendido no chão pois não cabemos juntos na cama apertada. Lembranças de domingo são constantes, repito, e podem ocorrer nos outros dias da semana, mas especialmente aos domingos é que vem à mente aquele cheiro acre de banheiro semi limpo, os alaridos e as patinhas da cadela arranhando o chão lamuriosamente, implorando para passear na rua.

  De domingos mais antigos eu gosto de lembrar quando íamos a praia, a família toda reunida, decidida a pelo menos por um dia fingir ser normal e aproveitar prazerosamente algum momento. Sentávamos a beira do mar e aí é cada um com sua diversão. A minha era fantasiar histórias, criar lugares, encenar situações (acho que toda criança faz isso). De mais nítido eu consigo lembrar de um bonequinho do Wolverine, que dentre os poucos brinquedos era o meu preferido. Eu sempre o levava comigo para todos os cantos, a praia é que ele não poderia faltar. Era o meu ator principal, o Samuel L. Jackson do Tarantulino. Apesar de todo carinho e de recordar perfeitamente de todas as suas cores, fisionomia, os bracinhos e as perninhas flexíveis, não sei qual fim que teve. Deve ter se perdido em alguma mudança, talvez mar adentro ou soterrado em algum castelo de areia. Simplesmente sumiu, feito a ilha de Krakatoa, puf! Sumiu e sobrou lembrança. Espero que tenha tido um final trágico e bonito, digno dos grandes papéis cinematográficos.

   Constantemente vamos nos renovando, adquirindo novos hábitos, revendo pensamentos, analisando de outras formas as mesmas situações. Tudo que um dia era novo e ardia intensamente tem um lugarzinho reservado na memória para de uma vez por todas se aquietar. Uns chamam isso de evolução ou em outras palavras envelhecer. Eu chamo isso de vida e não vejo nada mais que um processo normal que além de saudável é indispensável.

  Já fazem seis anos que eu tenho esse blog. É um bom tempo visto que as coisas que eu tento ter ou fazer nunca duram mais que três. Apesar disso, ele não significa nada e 99% do que nele está escrito é um imenso cagalhão boiando num mar esquisito. Escrever me reativa as memórias e eu parei pra pensar: Será a vida esse looping de recordações? Ou estou eu atormentado demais por fantasmas esquecidos? Wolverine ainda vive? e os baldes e as pazinhas de areia? Foram algum dia reais? E por existirem nas minhas lembranças ainda são reais? Ou deixam de ser? Quem, de certa forma, passou pela minha vida, Ainda existe? Existiu? Ou estão todos juntos a brincar com Wolverine e baldes e pazinhas numa tarde de domingo em alguma praia fictícia? Que nunca existiu.


sábado, 24 de setembro de 2016

Na beira do pensamento
Sentado o homem está
Apoiado, mãos no muro
Prestes a zarpar.

A viagem é sem  rodeios
Direto ao ponto principal
Sente o baque, pisa o freio
Ânsia desproporcional.

No limite da loucura
Margeando o arvoredo
Em penumbras, névoa escura
Os trovões tartamudeiam.

E se em grama esverdeada
Sentado ele está
Não carece de perguntas, não duvida
Sente a brisa lhe afagar.

No peito guarda perguntas
Se caminha e nada vê
Não tem pressa, calmo e quieto
As pernas não podem correr.

A charada é irresolúvel
Pois não podes responder
Quem seria tal animal
Além de mim, e de você?







quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Numa dispensa houve um rato
Que só manteiga comia,
Uma pancinha criara
Que nem Lutero o vencia.
A cozinheira veneno
No buraco lhe foi pôr;
E tais apertos se viu
Como quem arde de amor.

Dentro e fora corre doido.
Infinda água bebia,
A casa toda roendo,
Não mitigava a agonia;
Dava pulos desesperados
Tanto o apertava a dor;
De cansaço está rendido
Como quem arde de amor.

Afinal agoniado
Aparece a luz do dia,
na cozinha anda a correr
E no lar já estendia.
Estrebuchava o coitado,
E vendo-o no estertor,
Ria a cozinheira. O pobre
Expirou como de amor!

Fausto.