quarta-feira, 5 de outubro de 2016

  Tenho pensado sobre o papel da arte e os diversos meios que temos de expressar sentimentos. O ato de escrever ou compor uma música, por exemplo, é uma forma de manifestação dos sentidos que não encontram significação pela conversação cotidiana.Nós não criamos o pensamento, ele é que nos visita e se externaliza de alguma maneira. É nessa possibilidade de externalização dos sentimentos atrelado a arte que tento descobrir alguma lógica. Esse meio de comunicação que o ser humano encontrou para ir além das palavras, que transgride as barrerias linguísticas e que pode ter significado semelhante tanto para mim como para um chinês que vive do outro lado do mudo e possui uma cultura completamente diferente da minha.

  A música ou qualquer outro tipo de arte é antes de tudo uma força da natureza na sua forma mais bruta. Assim como uma árvore cresce em terreno favorável e desenvolve toda sua máxima potencialidade, a arte é a expressão da natureza em si mesma, é o encontro direto do criador com a criatura, seja ele nomeado de deus, universo ou qualquer outra coisa.

  É a partir desse momento que estamos aptos a ter contato com essa inteligência já não estremada e que por isso permite uma outra percepção de coisas que até então superficiais. Ou seja, o processo de aprender a tocar algum instrumento, não é apenas sobre executar os movimentos corretos ou saber ler tablaturas, mas está se aprendendo nesse momento uma nova linguagem que permite comunicações que antes eram limitadas. Gradualmente compreende-se melhor essa nova forma de expressão e isso se reflete no sentimento que é passado pelo instrumento.

  Eu uso muito o exemplo da música pelo fato de que é o que está mais próximo de mim. Aprendi a tocar violão alguns anos atrás. Nunca fui bom e confesso que tive dificuldades no processo até o ponto de desistir e me contentar apenas com o básico. Porém confesso também que quando comecei a conseguir fazer esse básico me senti muito bem pois a música passou a ter um outro significado para mim. Comecei a escutar as músicas de um outro modo, identificando os sons, os tempos, as batidas. Cada instrumento passou a ter um significado e uma linguagem própria onde antes só quem se comunicava era a letra. E olhe que eu não me aprofundei nisso, nunca estudei música e o pouco que sei foi por curiosidade minha.

  Escrito a partir de rápidas reflexões noturnas eu concluo que um dos papéis da arte é esse, suprir a carência da expressão linguística para os sentimentos tão complexos que nós temos.

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

  A primeira vez que tive contato com Celine foi coisa de cinco anos atrás se mais uma vez não me decepciona a falha memória. Eu cursava história em uma universidade e andava mais perdido que uma formiga faminta em um piquenique.

  Contando os pormenores eu posso dizer que era algum dia útil da semana e eu me preparava para ir pegar um ônibus rumo a casa de uma garota com quem me relacionei na época. Relação conturbada por sinal, mas tentarei me ater a apenas um assunto. É sempre assim, começo falando de uma coisa e então já penso em outra, quando criança o médico disse que isso era por causa de um déficit de atenção seríssimo. Viu? Já falei sobre várias coisas. O médico nunca esteve tão certo. Vamos tentar recomeçar.

  Nessa época eu lia bastante. Passava horas nos alfarrábios da cidade pechinchando livros, garimpando estantes empoeiradas e esquecidas. Não saia de casa sem um livro debaixo do braço, era mais fácil esquecer de vestir a camisa que atravessar o portão sem algo para ler. Lia andando, no ônibus, na fila, comendo e também sonhava com as minha frases preferidas que fazia questão de decorar. Os que conviviam comigo sofriam com meus delírios literários. se me visitavam em casa eram obrigados a escutar por horas o que eu tinha a dizer sobre vários autores, eu declamava poesias e se estivesse bêbado então era impossível me aguentar.

  O principal resultado desse contínuo enlevo literário foi me inflamar a novas revoltas, me sentia louco, excêntrico, começava a me afastar dos mais próximos e a tratá-los com desprezo, realmente beirando o desespero. Em certo ponto fiquei definitivamente triste e infeliz, precisava mudar. Achava que com uma mudança de ares esse sentimento que me ensandecia poderia ser correspondido. De uma formiga perdida em um piquenique me tornei uma, das bem pequeninas, perdida no mundo, larguei tudo e fui embora, mas não por muito tempo. As primeiras fuga nunca dão certo.

  Tudo isso para contar que ao ler Viagem ao fim da noite de Celiné eu senti a mesma excitação e desespero e loucura daquele tempo em que decidi abandonar tudo e ir viver ao livre, me sustentar com minhas próprias mãos e descobrir o que o mundo e as pessoas me reservavam.

  E é exatamente isso, cada aventura de Bardamu era uma pérola achada, eu sofregava de um parágrafo para o outro, era como um intenso e sufocante mergulho. Todas as sensações estavam ali, fortes, pulsantes, cruas. O meu próprio miserável e egoísta mundo sendo recriado e tomando novas formas por todos os lados. Seu modo de escrever então é fascinante e apesar das traduções perderem um pouco do real sentido, o português e o francês são irmãos gêmeos por terem como origem o latim. Um dia estudarei francês para ler a obra original.

  Hoje eu terminei de lê-lo pela terceira ou quarta vez e a sensação é a sempre a mesma. Se um dia eu fingi intensamente ser Arturo Bandini, a partir dessa época tive mais um herói que de algum modo salvou minha vida, para o bem ou para o mau.

sábado, 1 de outubro de 2016

Sou bastante fiel na minha infidelidade, e, embora mudado, continuo igual, e a minha única ânsia é: Como posso ser útil ao mundo, será que não posso servir a alguma finalidade e ter alguma serventia, como fazer para aprender mais e estudar profundamente certos assuntos? Você vê, é isso o que me preocupa constantemente, e então me sinto aprisionado pela pobreza, excluído da participação em determinados trabalhos e certas coisas necessárias se encontram fora do meu alcance. Eis aí um motivo para não escapar à melancolia e ai se sente um vazio onde deveria haver amizade e fortes e sérias afeições, e um terrível desânimo rói a nossa própria energia moral, e o destino parece opor uma barreira aos instintos da afeição, e uma inundação de desgosto se levanta para nos sufocar. E exclama-se: "Até quando, meu Deus!"

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Hoje não quero questões!
Estou tão fresco, tão ligeiro;
A alegria e as canções
Inventei-as eu primeiro.
Por isso bebo! Pra baixo!
Tocai lá! Estou como um cacho!
Tu la detrás, vem aqui!
Toca lá! Foi bem assim.

Minha mulher dava berros,
Até a roupa me rasgou,
Lançou-me em rosto os meus erros,
Estafermo me chamou.
Mas eu bebo, bebo bem;
Tocai lá, bebei também!
Estafermos, é tocar!
Se tinir, logo emborcar.

Não digais que ando perdido!
Estou aqui porque me apraz;
Se não fiar o marido,
Fia a mulher ou o rapaz.
Beba eu sempre sem parar!
Sus, amigos, é tocar!
Uns aos outros, sem ter fim!
Desta vez foi bem assim.

O que me alegra e dá gosto
Posso sempre suceder:
Deixai-me aqui neste posto!
Já me não posso em pé ter.

Fausto.

domingo, 25 de setembro de 2016

    Aos domingos todas as tristezas do mundo se intensificam e não há playlist que dê um jeito nisso. Sabem todos aqueles que sofrem que a alegria é apenas uma sombra projetada pela dor, uma penumbra fina e sensível que realmente não dura muito tempo se exposta. Então, o que são as lembranças? O que são as lembranças de um domingo? Sol quente, vento constante,  ela deitada e meu colchão estendido no chão pois não cabemos juntos na cama apertada. Lembranças de domingo são constantes, repito, e podem ocorrer nos outros dias da semana, mas especialmente aos domingos é que vem à mente aquele cheiro acre de banheiro semi limpo, os alaridos e as patinhas da cadela arranhando o chão lamuriosamente, implorando para passear na rua.

  De domingos mais antigos eu gosto de lembrar quando íamos a praia, a família toda reunida, decidida a pelo menos por um dia fingir ser normal e aproveitar prazerosamente algum momento. Sentávamos a beira do mar e aí é cada um com sua diversão. A minha era fantasiar histórias, criar lugares, encenar situações (acho que toda criança faz isso). De mais nítido eu consigo lembrar de um bonequinho do Wolverine, que dentre os poucos brinquedos era o meu preferido. Eu sempre o levava comigo para todos os cantos, a praia é que ele não poderia faltar. Era o meu ator principal, o Samuel L. Jackson do Tarantulino. Apesar de todo carinho e de recordar perfeitamente de todas as suas cores, fisionomia, os bracinhos e as perninhas flexíveis, não sei qual fim que teve. Deve ter se perdido em alguma mudança, talvez mar adentro ou soterrado em algum castelo de areia. Simplesmente sumiu, feito a ilha de Krakatoa, puf! Sumiu e sobrou lembrança. Espero que tenha tido um final trágico e bonito, digno dos grandes papéis cinematográficos.

   Constantemente vamos nos renovando, adquirindo novos hábitos, revendo pensamentos, analisando de outras formas as mesmas situações. Tudo que um dia era novo e ardia intensamente tem um lugarzinho reservado na memória para de uma vez por todas se aquietar. Uns chamam isso de evolução ou em outras palavras envelhecer. Eu chamo isso de vida e não vejo nada mais que um processo normal que além de saudável é indispensável.

  Já fazem seis anos que eu tenho esse blog. É um bom tempo visto que as coisas que eu tento ter ou fazer nunca duram mais que três. Apesar disso, ele não significa nada e 99% do que nele está escrito é um imenso cagalhão boiando num mar esquisito. Escrever me reativa as memórias e eu parei pra pensar: Será a vida esse looping de recordações? Ou estou eu atormentado demais por fantasmas esquecidos? Wolverine ainda vive? e os baldes e as pazinhas de areia? Foram algum dia reais? E por existirem nas minhas lembranças ainda são reais? Ou deixam de ser? Quem, de certa forma, passou pela minha vida, Ainda existe? Existiu? Ou estão todos juntos a brincar com Wolverine e baldes e pazinhas numa tarde de domingo em alguma praia fictícia? Que nunca existiu.


sábado, 24 de setembro de 2016

Na beira do pensamento
Sentado o homem está
Apoiado, mãos no muro
Prestes a zarpar.

A viagem é sem  rodeios
Direto ao ponto principal
Sente o baque, pisa o freio
Ânsia desproporcional.

No limite da loucura
Margeando o arvoredo
Em penumbras, névoa escura
Os trovões tartamudeiam.

E se em grama esverdeada
Sentado ele está
Não carece de perguntas, não duvida
Sente a brisa lhe afagar.

No peito guarda perguntas
Se caminha e nada vê
Não tem pressa, calmo e quieto
As pernas não podem correr.

A charada é irresolúvel
Pois não podes responder
Quem seria tal animal
Além de mim, e de você?







quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Numa dispensa houve um rato
Que só manteiga comia,
Uma pancinha criara
Que nem Lutero o vencia.
A cozinheira veneno
No buraco lhe foi pôr;
E tais apertos se viu
Como quem arde de amor.

Dentro e fora corre doido.
Infinda água bebia,
A casa toda roendo,
Não mitigava a agonia;
Dava pulos desesperados
Tanto o apertava a dor;
De cansaço está rendido
Como quem arde de amor.

Afinal agoniado
Aparece a luz do dia,
na cozinha anda a correr
E no lar já estendia.
Estrebuchava o coitado,
E vendo-o no estertor,
Ria a cozinheira. O pobre
Expirou como de amor!

Fausto.


quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Não é este mundo concludente;
Uma espécie ergue-se além -
Invisível como música
Mas concreta como som
Ela acena e desconcerta -
Filosofias - não sabem -
E por fim, numa charada -

Esvai-se a sagacidade -
Doutores quedam perplexos -
Para obtê-las os que padecem
Das gerações o desprezo,
E morrem crucificados.

Resvala a fé - troça e ri -
Enrubesce - se alguém olha -
Puxa um galho de evidência
Pede o rumo ao catavento
São muitos gestos, do púlpito
Alto soam os aleluias

E narcóticos não acalmam
O dente que morde a alma.

sexta-feira, 16 de setembro de 2016


Corri decorando palavras na mente, frases, textos. Corri com tudo, dois postes, três árvores enfileiradas, Biu contando a velha piada sem graça e pedindo trocados na esquina. "Qual a cor do cavalo..." Paro, aperto sua mão e lhe coloco cinco reais no bolso da camisa. "Quem descobriu..." "Agora não Biu, preciso voltar!" Atravessei a rua rápido e com muito medo, confiante. Não comigo! Só preciso correr, as palavras fluem no braço forte do rio e não se prendem nas margens, Achei a felicidade? Me sentindo bem como há dias não me sentia.. Ah! Que cidade faceira! de grandes pegadas e estrondosos gritos que ainda ecoam em tuas casas de paredes antigas, nas ruelas cruzadas, nas pontes que te unem e que se imortalizaram na alma de grandes poetas. Abri o portão com extrema desenvoltura e ar magistral, o jarro verde na varanda estava quebrado e o lixo de dias seguidos empilhados. Não era o bastante para me encomodar. Não comigo!

 Corri pra mesa pulando cacos de vidro de alguma garrafa que um dia estilhaçou e virou ornamentação da sala. Arte moderna. Papel e caneta nos mesmos lugares de sempre, nunca tinha usado mas sempre achei que um dia ia escrever um livro. E o dia tinha chegado! Sim! Não uma história, um livro! Sentei, peguei a caneta e..... Escrevi bastante! Ou achou que, como prefere a maioria, as palavras iam fugir? Não de mim. Não comigo! Escrevi a madrugada inteira e era o sentimento de uma grande viagem, outra grande viagem! Longos dias e longas noites, a flor da pele, desejando tudo, apaixonado pela natureza e pelos homens.

 Acordei com um sentimento de ressaca, coisa que não sentia há dias, por falta de grana mesmo. Parecia que eu tinha tomado um porre daqueles, sabe? Boca seca, dor de barriga, esquecimento, vazio, tédio, encômodo, leve tendência a auto destruição. Entre levantar da cama e desvencilhar o lençol do corpo para dar uma mijada no banheiro levaram-se talvez duas horas de prostração contagiosa. Preguiça suficiente para interromper todas as guerras do mundo. Peguei aquele monte de papel, li e reli, achei tudo uma grande bosta e senti um pouco de vergonha. Como se, hipoteticamente, a pessoa que eu mais amo no mundo tivesse lido aquilo e achado que tais coisas só fossem capazes de serem escritas por algum pobre diabo desengonçado e sem a mínima da mínima da milésima mínima habilidade para fazer aquilo dar certo. Olhei pra pia e a louça suja beirava o teto. Meu estômago também olhou e roncou alto...


terça-feira, 13 de setembro de 2016

Amores contrariados pela desgraça e pelas grandes distâncias são como amores de marinheiros, não há jeito, são irrefutáveis e são um sucesso. Como a vida não passa de um delírio abarrotado de mentiras, quanto mais longe estivermos e quanto mais pudermos botar mentiras ali dentro, mais então ficaremos felizes, é natural e é sempre assim. A verdade não é comestível.

Inventamos desculpas esfarrapadas, protegendo a própria carcaça enquanto ainda pode se manter de pé. Os deslizes alheios são intoleráveis, mesmo que os próprios sejam mais podres, imundos. Agora é fácil nos contarem a respeito de Jesus Cristo, será que ele ia no banheiro na frente de todo mundo, Jesus Cristo? Tenho cá pra mim que aquilo não ia durar muito tempo, o troço dele, se fizesse cocô em público. Pouquíssima presença. O resto é lorota.

Depois de anos, repensando nisso, acontece de querermos recuperá-las, as palavras, que algumas pessoas disseram, e as próprias palavras, para perguntar o que quiseram dizer.... Mas já se foram! Não tínhamos instrução suficiente para compreendê-las.... Gostaríamos de saber, assim, só para saber, se desde então não mudaram de opinião, sabe-se lá. Mas é de fato tarde demais. Acabou-se! Ninguém sabe mais delas. A gente tenta então continuar nosso caminho sozinho, na noite. Perdemos nossos verdadeiros companheiros. Não lhes dizemos a pergunta certa, a verdadeira, quando era tempo. Ao lado deles não sabíamos. Homem perdido. Estamos sempre atrasados. Tudo isso são arrependimentos que não enchem barriga.

terça-feira, 9 de agosto de 2016

  Ton era um garoto muito criativo e aos 10 anos de idade já desenhava muito bem. Os pais não podiam receber visitas que já iam gritando pelo menino para que ele mostrasse seus desenhos e sua precoce habilidade com os lápis de cor. De seu quarto, Ton escutava os gritos do pai e já sabia o que devia fazer, descia lentamente as escadas com os caderninhos debaixo do braço e ia até a sala com cara de poucos amigos.


-Oh, que bonito! Foi você mesmo que fez?

- É um belo desenho, Ton!


  Os pais regojizavam de orgulho e já espelhavam nele mil e uma possibilidades de ter sucesso na vida. Coisa que nunca tiveram. Ton não gostava muito daquilo, sempre foi um garoto tímido, até mesmo estranho e não achava nada demais nos dinossauros e tanques de guerra. Enquanto as visitas iam folheando seu pequeno caderninho ficava prostrado a beira do sofá com cara de tédio e desanimado. Na verdade só queria voltar para o quarto e terminar a guerra entre os índios apache e os bravos soldadinhos de plástico.



  Na escola era a mesma coisa, as professorinhas velhas e carrancudas viviam a encher seu saco perguntando o que havia desenhado de novo, o garoto se limitava a responder duas ou três coisas e voltava para o seu lugar. Eram poucas as tarefas em sua classe, logo as professoras pediam aos alunos que trouxessem coisas de casa para que mostrassem aos coleguinhas e a partir disso desenvolverem algum tipo de atividade. Alguns levavam fotografias, outros brinquedos e até mesmo animais. Uma vez, Lucinha, que sentava duas cadeiras atrás de Ton, levou um vibrador que pegara no armário da mãe. Esperou sua vez de mostrar o que tinha levado e quando acionada começou a tirar aquele enorme cacete cor de pele da bolsinha. Ton olhou para trás e reconheceu o objeto. A professora ao perceber do que se tratava, disparou em direção dela feito uma flecha e empurrou de volta para dentro da mochila aquela grossa rola de plástico. -"Pelo amor de deus garota!" "Você sabe o que..... " tentava a velha professora organizar as palavras. -"Leve isso para casa e pelo amor de deus guarde onde achou." Talvez fizesse muito tempo que a professora não entrava em contato com um daqueles e por isso a reação eufórica e afobada.



  Os alunos também gostavam bastante das aulinhas de literatura. O professor, um senhor grisalho e dentuço que usava suspensório e tinha hábitos engraçados costumava pedir aos alunos que escrevessem alguma coisa em casa para que na aula seguinte todos pudessem sentar em círculo e cada um ler a sua. As crianças são pequenos reservatórios de criatividade e imaginação, transbordam até o topo!

  Ton despretensiosamente não gostava de fazer as tarefas dada pelos professores e realmente achava tudo aquilo idiota e muito fácil, com frequência a coordenação o repreendia ou ligavam para seus pais na intenção de relatar tal comportamento descabido do rapaz, isso gerava uma série de brincadeirinhas entre os garotos mais saidinhos que não perdiam uma chance para tirar um sarro de alguém.

  Até que um dia ele resolveu participar da roda de leitura do professor dentuço. Na noite que antecedia a aula trancou-se no quarto e sentou-se em sua mesinha, afastou os desenhos, atirou o pajé na cama e o general para perto da porta e começou a escrever o que vinha na cabeça. Lembrou de quando era mais novo e a família saiu de férias para uma praia, de uma prima que um dia se perdeu na mata, lembrou também da vez que foi em um circo e todos começaram a correr por que acidentalmente a peruca do palhaço pegou fogo e também recordou em câmera lenta da hilária cena da professora atravessando a sala como se nada mais importasse na vida para enfiar de volta uma grande rola de plástico na mochila da Lucinha, como se o aparecimento daquela coisa profana fosse corromper eternamente a vida dos fedelhos. Gostou da experiência e foi dormir feliz.

  Afastaram as cadeiras com seus bracinhos e fizeram um círculo na sala. Fred começou a ler e era uma história sobre coxinhas alienígenas que invadiam a cantina da escola, os meninos adoravam e urravam até o dentuço pedir calma. E assim foram lendo um por um, Lucinha escreveu sobre os pais brigando, Amanda amava animais e em suas histórias eles falavam e agiam como seres humanos, até que chegou a vez do Ton e para surpresa de todos ele tirou uma página meio amassada do caderno e começou a ler.

  Em pouco tempo se desarmaram, até os saidinhos prestavam atenção. Era como um pequeno milagre, algo realmente muito engraçado e trágico que produzia diversas sensações nas outras crianças, ele ia lendo e lendo sobre um ser mágico que morava em uma casa no meio da floresta e apesar de ser mágico e ter vários poderes legais se sentia muito triste por que não tinha ninguém para mostrar tudo que era capaz de fazer. O feiticeiro desconsolado transformava árvores em grandes tigelas de doce de leite e chorava.Ficaram todos encantados e atentos para ouvir tudo até o final. Ao término da aula correram para o pátio e ficaram brincando de mágicos e super poderes.

  Aquilo encantou o garoto Ton, nunca mais seria o mesmo. Todo dia depois da aula ele corria para casa pensando em frases e decorando piadas. Subia as escadas até o quarto e o espacinho na mesa já estava no tamanho certo. As vezes escutava os gritos que vinham da sala e já nem se importava. Tinha achado o que precisava. Já não queria pintar nem desenhar, na verdade nem lembrava disso,  apenas escrevia e enquanto ia brincando até podia ouvir os risos contentes dos coleguinhas ou mesmo imaginar o alegre e bonito sorriso de Duda ao escutar a próxima historia.

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Revisitando passados
uma fenda estreita no tempo
poeira assentando lentamente

um corpo entregue às traças
copos de vinho e fumaça
uma mente boiando em azul imenso

O presente é inevitável
acontecimentos cotidianos
decepção é certa
arrependimentos também

Folheio livros de páginas vazias
que eu achava que tinha escrito
saltei eventos, evito encontros

Quando achei que tudo estava terrível
as coisas estavam indo muito bem
era só a vida que sempre fez suas brincadeiras

Uma entidade separada do cara que eu era antes

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

O melhor momento do dia a caminho da sala de aula é quando consigo realizar todo trajeto desde a entrada pelo portão principal da universidade até o restaurante universitário sem encontrar viva alma conhecida. Apesar da eterna procura por pessoas que de alguma forma deem sentido a esse mundo ou aos afazeres diários, me encontro sempre pairando no universo da obviedade e cada um que se aproxima de mim parece mais estático que os animais empalhados que eu gostava de ver em museus quando criança, apesar de possuírem todos membros em perfeito estado e se acharem em total sanidade mental.

Prefiro caminhar e dar por fim o que tenho que fazer, por isso as vezes desvio para esquerda ou direita, dependendo do trajeto contrário que vem fazendo alguém que eu possa conhecer e escapo dos indesejáveis e repetitivos cumprimentos que são tão angustiantes quanto o meu gato a miar por estar condenado a passar o resto de sua vida a atrofiar seus instintos animais preso nesse apartamento minúsculo.

Certo dia acordei estranho, suando mais que o normal e a tremer o corpo todo, feito criança quando contrai as primeiras doencinhas e chora de febre. Demorei a desvencilhar o lençol do meu raquítico corpo mas sabia que precisava fazer isso para cumprir com as obrigações diárias. Diante do espelho senti uma repulsa amarga e um sentimento de vazio, de vazio mesmo, não um vazio de emoções ou algo melancólico, eu senti meu corpo vazio, sem entranhas nem fígado nem estômago nem coração só a pele visível e um sopro sombrio ocupando o que me sustentava em pé. Por deus, nem vivo nem morto e com duas bolas penduradas entre as pernas. Senti vontade de estraçalhar o espelho mas não tive coragem e isso só fez aumentar minha ineficiência que sempre se fez presente em qualquer coisa que eu tente fazer.

Ao atravessar o portão já me encontrava dentro da universidade e fui andando ao meu destino, desviando dos buracos e das pessoas. Não lembro detalhadamente do céu mas provavelmente estava enegrecido e com nuvens densas, lembro do cheiro nostálgico da relva molhada com a chuva da noite anterior e de duas crianças de sete ou oito anos encapuzadas capinando o mato em frente ao bloco de ciências humanas. 

Já na fila quilométrica onde os estudantes se aglutinam sem questionar pra pegar a boia tentei me concentrar em não escutar ou pelo menos não entender (isso era mais fácil) as conversas sem nexo ou final lógico da juventude comprometida em ser o futuro do país, mas era impossível.

- É sério, ele falou isso! Que eu era gorda e que meus dentes são tortos.. Ha ha

- Que vibe em?

-Gratidão.

- Namastê


- O Brasil está assim por causa desse monte de gay que quer empurrar sua doutrina gayzista e destruir a família.

- Essa carne fede a cavalo. Deve ser de cavalo mesmo.

Almocei e fiz o trajeto até a sala de aula, me sentia um pouco melhor e disposto até mesmo a arriscar uma prosa ou outra no caminho. Talvez o problema esteja comigo, comecei a pensar, e talvez seja hora também de me encaixar mais nas coisas ao redor ao invés de querer encaixar os outros ao meu mundo.

Chegando em casa liguei o rádio e me estendi na cama esperando não acordar tão mal novamente.
 - É tudo uma questão de adaptação, sempre disse a minha mãe. - É preciso engolir alguns sapos para se conseguir o que quer. Se ela tivesse dito que era preciso engolir baldes de merda todos os dias só para sair da cama eu não acreditaria, porém ela nunca estaria tão certa.