sábado, 29 de dezembro de 2012

Acordei de súbito, assustado, suando muito pela testa e com os pés gelados. Olhei pro lado com os olhos ainda pesados e os cílios pregados. Ela não estava mais ali, me senti bem e tentei pegar no sono de novo, mas algo estava errado, muito errado. Desvencilhei o lençol do corpo e senti algo estranho na altura do umbigo, algo muito estranho.

- Que merda é essa? Pensei, enquanto passava a mão para examinar aquela dor tão familiar que se alojava no meu estômago. Que merda é essa? Algo cravado na barriga, senti um cabo macio de plástico e tentei puxar aquilo, em vão. O sol esquentava o pequeno quarto a ponto de incomodar, pelo barulho que vinha da vizinha, já se passava das 9 da manhã. A vizinha esquizofrênica sempre acordava às 9 e remexia os móveis da casa com uma força surpreendente.

Continuei reflexivo. Deitado na cama, solitário, de barriga pra cima, com um pouco de ressaca e bastante confuso. "Mas que merda é essa?" Cogitei a possibilidade de ser um sonho, logo mais acordaria e aquela puta de ontem a noite, com salto alto e saia de couro preto estaria ali, roncando do meu lado e babando meu travesseiro. Não, era tudo real, o sol estava quente demais, suava em bicas pela testa e tinha uma merda de um punhal cravado na barriga. Não doía, não sangrava, apenas incomodava quando eu virava para tentar fugir do sol que derretia pela janela em direção a cama.

Maldita vadia - amaldiçoava-a com tom de voz vibrante. Dei uma olhada, ainda deitado de barriga pra cima, para a escrivaninha onde costumava guardar meus escritos, documentos e alguns trocados. Estava tudo lá, intacto, ela não roubara nada. Maldita piranha, tentou me matar, mas não contava com a minha sorte! Sim, um grande homem de sorte, com vinte e dois anos de idade, morando em um quarto barato e úmido, vizinho  de uma louca esquizofrênica viciada em decoração de ambientes internos. Sem objetivos, pouco dinheiro, inconformado com alguma coisa, e sem ideia de por onde começar. Em plena quinta-feira enquanto outros da minha idade vão às universidades, fazem compras, visitam suas namoradas e parcelam seus veículos. Eu estava ali, vinte e dois anos, um punhal enterrado na altura do umbigo, não doía, não sangrava, apenas incomodava.

O dia parecia bonito lá fora. Lembrei dos jarros de flores da senhora Zazá, dona do conjunto habitacional que eu me mudara havia dez dias. Jarros estrategicamente posicionados, flores brancas atrás das violetas separadas por uma muretinha viva de trepadeiras e de repente me senti triste e aflito. Estiquei o braço esquerdo até a escrivaninha, senti o cotovelo estralar e liguei o rádio para me sentir menos só. Normalmente me dou bem com minha solidão, somos companheiros fiéis e bebemos e fumamos cigarros por longas noites filosóficas. Mas naquele dia algo estava errado, o sol quente demais, uma noite anterior louca demais, com direito a muitas drogas que me deixaram depressivo nessa manhã.

Liguei o rádio para fugir um pouco do real e tentar pensar em outras coisas além daquele punhal cravado na barriga. As pessoas normais esperneiam quando as coisas não saem como elas planejam. Esperneiam, reclamam, falam muito e escutam muito pouco. Eu sou mais como um vegetal, um ser totalmente adaptável e passivo, frio, adepto das minhas convicções, apenas relaxo e deixo as coisas acontecerem. Meu pai, certa vez, (e ainda lembro exatamente desse dia. Sentado na sala, com um longo charuto fedorento entre os lábios, puxando e exalando aquela fumaça densa e cinza, cruzando as pernas de instante em instante) disse que os jovens dessa geração são grandes bundões (inclusive eu), acomodados, sem objetivos, verdadeiros bundões inanimados. E ele continuava por horas com todo aquele papo saudosista sobre os jovens atuais, bundões, que nem na época da geração perdida os jovens eram tão idiotas e imprestáveis. Ele as vezes acertava nas palavras.

Ah, camaradas. Se algum dia se sentirem como eu, triste a ponto de não se importar com um punhal firmemente cravado na barriga, que não dói nem sangra, apenas incomoda, não liguem o rádio! Essas coisas foram feitas para aumentar o número de suicídios nas grandes cidades. Como pode tanto lixo? Como aguentamos engasgar tanta merda seca de uma vez só? É verdade que a vida sem música seria um pernício, mas isso que as rádios propagam não pode ser música, não pode ser nem resquício de notas acidentalmente arranjadas! Depressivo demais, vivemos no meio disso tudo, não existe qualidade em absolutamente nada.

E quem sou eu, para apontar esse dedo sujo, essa unha grande e encardida, para pronunciar tais revoltas? Nunca termino o que começo, nunca sei o que quero e não sou bom em nada. Mas a minha alma jovem e inquieta almeja algo grandioso. Sim, essa alma jovem que flameja uma chama roxa e me contagia para algo que não posso explicar. Não agora.

É, caro locutor, estamos no mesmo barco, escorrendo na mesma vala que termina no mesmo amontoado de merda e esgoto. Arremessei com dificuldade o rádio pela única janela do quarto, puxei o lençol até o pescoço e procurei uma posição melhor na cama, imaginando o porque daquela puta ter feito aquilo comigo.






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